O senador Marco Maciel discursou no Senado sobre a reforma partidária. O pensamento do ilustre representante de Pernambuco a favor da fidelidade partidária é conhecido e tem, ou deveria ter apoio consensual, tal a repulsa popular ao festival de troca de partidos políticos por parlamentares em todas as legislaturas: o troca-troca de legendas. A motivação, muitas vezes — ou quase sempre — não tem justificativa ética ou moral. Algumas têm algum fundamento admissível quando o parlamentar pretende candidatar-se a postos eletivos majoritários e o partido, dominado por um ‘‘dono’’, nega-lhe a legenda. O recurso é abrigar-se em outra, para tentar eleger-se.
O exemplo sugere discutir o que é partido político. Benjamin Constant faz cerca de duzentos anos, nomeado conselheiro de Estado por Napoleão, escreveu que partido político é uma associação de pessoas com o mesmo pensamento. Uma centúria depois, Loewenstein aduziu: ‘‘E com a mesma identidade ideológica’’. A vida partidária brasileira, com raras exceções, não satisfaz nem a uma nem a outra das definições. Os partidos reúnem pessoas só temporariamente com o mesmo pensamento, nem a ideologia é rigorosamente a mesma dos que se filiam. Atualmente, a exceção é o PC do B, de formação stalinista.
Nem mesmo o PT é um partido, mas uma frente partidária. Nasceu no Colégio Sion, da alta burguesia, consolidou-se nas sacristias dos clérigos da Teologia da Libertação (uma joint venture cristã-marxista na definição do cientista político Leôncio Martins), cresceu com a adesão de salvados de incêndio das guerrilhas comunistas do período militar, tudo cimentado na excepcional liderança de um sindicalista, hoje presidente da República. Provam-no os 30% de trotskistas e de marxistas-leninistas desavindos com a cúpula petista, que tem de apelar para o centralismo democrático (uma invenção de Lênin), ameaçando expulsar dissidentes.
Entre nós, ao assinar a ficha de filiação partidária, o militante compromete-se a respeitar o programa do partido. Raramente o lê. E mais raramente o respeita. Pouquíssimos são os deputados que se elegem pelo seu próprio prestígio, com votos acima do quociente eleitoral. Todos os demais se beneficiam da soma dos votos dos não-eleitos e dos dados à legenda, o chamado sistema de sobras. São reféns do partido que os elegem. Logo, traem-no ao deixá-lo.
Os próprios partidos são os responsáveis por isso. Dizem-se intransigentes defensores da fidelidade partidária, até que as circunstâncias lhes favorecem as intenções de crescer à custa da adesão de eleitos por partidos outros. Esquecem convenientemente o discurso teórico e tiram partido da capacidade de seduzir, usando sem o menor constrangimento a Oração de São Francisco, paródia do falecido Roberto Cardoso Alves, ao lembrar que ‘‘é dando que se recebe’’. As últimas eleições confirmaram esse procedimento nocivo, que depõe contra os políticos. Até o momento, 69 parlamentares mudaram de partido. Não se pergunte o porquê...
Em simpósio sobre reforma política realizado pela Fundação Milton Campos, faz dois anos, o então vice-presidente Marco Maciel, um dos palestrantes, foi acompanhado por todos os demais conferencistas, entre eles o então deputado Aloizio Mercadante, ao condenar ardorosamente a infidelidade partidária. Na teoria, todos brilhantes e concordes. Na prática, nem todos se lembram do que disseram. É o que se dá no momento, como se deu no passado. A causa está na eleição de presidente da República sem que seu partido tenha a maioria desejada.
Embora o presidente Lula não possa exercer o que se denominou presidencialismo imperial, o chefe do Estado ainda dispõe de enorme poder de fascínio (a caneta que assina dezenas de milhares de empregos no Executivo) e da força das medidas provisórias. Sua estrondosa vitória levou o PT a ter a maior bancada na Câmara dos Deputados, mas ainda assim é pouco para assegurar a aprovação das reformas constitucionais, imperativas para o seu propósito de transformar a democracia burguesa, que tem sido a nossa, na democracia popular.
Daí o troca-troca visando a obter a maioria de três quintos de cada Casa do Congresso, sem o que não há reformas constitucionais. A conseqüência é visível nas grandes mudanças de partido, alterando fortemente a composição da Câmara, entre as bancadas eleitas em 2002 e as resultantes hoje. O PT, que guarda pudor, resguarda a sua legenda de adesões comprometedoras. Só teve um deputado a mais, o petista suplente de um ministro eleito em coligação com o PT.
Mas deputados eleitos pelo PFL (09), PSDB (10), PMDB (5) e PP (4) migraram para partidos da base de sustentação do governo. O grande beneficiário foi o PTB. Ganhou 17 adesões de deputados que se descobriram pressurosos, adeptos de San Thiago Dantas, após lerem e se encantarem com a dialética persuasiva do grande ministro de Jango, que deixou aos pósteros uma herança intelectual valiosa. Nela se abeberaram, certamente, para procurar a legenda petebista.
Outro ganhador foi o Partido Liberal, com sete convertidos à doutrina de Hayek, ou do falecido Álvaro Valle, mais acessível aos postulados liberais, sob as bênçãos da Igreja Universal, do bispo Macedo. Cinco bateram às portas do PPS, porque puderam reencontrar suas idéias no extinto Partido Comunista Brasileiro, que se rendeu ao colapso do socialismo real e reajustou as leis de Marx às leis do mercado, tudo mesclado de socialismo utópico. Ninguém por motivos menos nobres ou convertidos pela força convincente que emana de certo andar do Palácio do Planalto, mas por efeito da ética de convicção de Max Weber. Cederam, sim, mas à tentação de melhor servirem ao povo...
Jarbas Passarinho
Foi ministro de Estado, governador e senador
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