MANAUS – Uma menina com 12 anos de idade da etnia Tukano teve o pé picado por cobra jararaca, no interior do Amazonas, e a família solicitou que rituais e práticas de cura indígena fossem realizados juntamente ao tratamento convencional. O uso de rituais foi negado pela direção do hospital que a socorreu, em Manaus. A atitude dos funcionários da unidade de saúde resultou em processo judicial cujo resultado aponta ganho de causa para a família da criança e condenação do hospital por danos morais.
O Ministério Público Federal no Amazonas (MPF/AM) manifestou-se favorável à condenação da União, da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e do Governo do Estado do Amazonas ao pagamento de indenização por danos morais à indígena. O caso ocorreu em 2009 e teve acompanhado do MPF/AM desde a chegada da criança a Manaus. Ela teve o pé picado por uma cobra jararaca no município de São Gabriel da Cachoeira (a 852 quilômetros de distância de Manaus) e, devido à gravidade do ferimento, foi transferida para o Hospital Infantil João Lúcio, em Manaus. Naquela unidade de saúde, a menina recebeu a indicação médica de amputação da perna, à qual o pai da indígena se opôs, solicitando a realização de tratamento tradicional de acordo com os costumes do povo Tukano.
O MPF/AM encaminhou recomendação ao Hospital Infantil João Lúcio para que promovesse a articulação dos conhecimentos da medicina comum com o conhecimento e práticas tradicionais de saúde dos indígenas Tukano, com indicações específicas como a autorização para permanência do pajé da comunidade no hospital durante o tratamento. Apesar de manifestar acatamento parcial da recomendação, a direção do hospital fez uma série de ressalvas, como a impossibilidade de realização de rituais de danças e cânticos dentro da unidade e da realização do tratamento comum ao povo indígena ao mesmo tempo em que se realizasse o tratamento médico.
Diante dos impedimentos, a família da menina decidiu transferi-la para o Hospital Universitário Getúlio Vargas, onde o MPF reuniu-se com os familiares da indígena, o pajé e a equipe médica responsável pelo tratamento. Na unidade, houve associação dos conhecimentos tradicionais ao tratamento médico regular. A menina foi submetida a cirurgias reparadoras, sem necessidade de amputação da perna ou pé, e teve boa recuperação.
Tratamento diferenciado
A Constituição Federal prevê, no artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado; e no artigo 231, reconhece aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
A Lei nº. 8.080/90 determina que o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena deve, obrigatoriamente, considerar, em suas ações, a realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas, bem como deve o Sistema Único de Saúde (SUS), se necessário, sofrer adaptações em sua estrutura e organização, a fim de propiciar essa integração e o atendimento necessário em todos os níveis, sem discriminação.
Decisão
No parecer, o procurador da república Julio José Araujo Junior explica que a proibição do tratamento discriminatório é decorrente dos princípios da igualdade e da isonomia. “O tratamento isonômico pressupõe um respeito à diferença, não se admitindo hoje em dia nenhum ato jurídico que entre em conflito com o referido princípio fundamental, em prejuízo de nenhuma pessoa, por motivos de gênero, raça, cor, idioma, religião ou convicção, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnico ou social, nacionalidade, idade, situação econômica, patrimônio, estado civil, nascimento ou qualquer outra condição”, afirmou o procurador.
Ele destacou, ainda, que tribunais internacionais têm manifestado entendimento semelhante, como é o caso do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Corte Constitucional da Colômbia.
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