domingo, 6 de setembro de 2009

Carniceiro das notícias



O “carniceiro das notícias” - assim foi chamado pelos principais órgãos da mídia mundial o apresentador de televisão de Manaus que sempre chegava ao lugar do crime antes da polícia e da concorrência. O cadáver do traficante ainda fumegava quando apareceram os repórteres do “Canal Livre”. “Cheira a churrasco”, comentou o apresentador Wallace de Souza, também deputado mais votado do Amazonas e ex-policial expulso por corrupção. Microfone na mão, tapava o nariz com a ponta da camisa para acentuar a dramaticidade. Toda semana havia um crime sensacional e lá estava o popular Wallace de Souza com seus furos e bradando em defesa da população. As encenações macabras terminaram quando a polícia suspeitou das antecipações jornalísticas e depois que um ex-militar confessou ter matado por encomenda do apresentador de TV. O fato despertou o interesse de jornais e televisões de vários países. Até da Coréia do Sul veio uma equipe para cobrir as investigações. Souza, seu filho de 26 anos e o irmão comandavam o sindicato do crime. Até que ponto chega a disputa pela audiência

Sensacionalismo é o termo usado para definir o tipo de matéria jornalística que divulga e explora, em tom espalhafatoso, fatos capazes de emocionar ou escandalizar um público. Ou seja, a exploração do que é sensacional. As notícias sensacionais levam o público a extravasar sentimentos existentes no inconsciente que o ego não deixa transparecer. Dessa forma, o sensacionalismo causa um fascínio no público. Fatos violentos, assustadores e excepcionais liberam desejos, temores e horrores que a gente nem sabe que habitam em cada um de nós. O apresentador de TV levou ao extremo o seu projeto de sucesso implícito, a ponto de mandar matar cinco traficantes e proxenetas para manter o clima escabroso dos programas. Era um factóide - fabricante de notícias. Um Fantasma da Ópera sem inclinações estéticas. Trazia para a realidade o tom macabro dos filmes de terror. Orson Welles, em 1938, dramatizou no rádio uma invasão marciana a New Jersey e provocou uma convulsão no país. Houve gente que saltou da janela do apartamento para não ser trucidada pelos monstros alienígenas.

Até os gênios literários procuraram despertar o imaginário popular, que sonha em violar tabus, enfrentar a ordem das coisas e levar as paixões ao limite. Stendhal escreveu “O vermelho e o negro” baseado no seminarista que matou a amante na igreja. Goethe escreveu “Werther” descrevendo o drama de um amigo que se suicidou. Eles nunca pretenderam instigar a inteligência do leitor, mas provocar reações subjetivas e passionais. Deu certo. Houve uma onda de suicídios na Europa depois de publicada a obra de Goethe. Freud explica: há coisas que provocam catarse. Essa abordagem psicossocial consegue explicar como são feitas a produção, seleção e edição de um veículo sensacionalista.

Em favor dos que trabalham sério na imprensa, podemos dizer que sensacionalismo e credibilidade se repelem. O público acaba se cansando de profissionais como Ratinho, Gugu e jornais do tipo Notícias Populares, que já nem existe. A discussão sobre ética cresceu muito nos últimos tempos. Os jornais já se libertaram desse filão malcheiroso no século passado. A realidade é que a mídia é antiética também pela inércia da população. A partir do momento em que o público aceita processar a informação antes de degluti-la, melhora sua capacidade crítica. Se a audiência aprende a separar o joio do trigo, os editores são obrigados a trabalhar melhor a informação antes de transformá-la em “produto à venda”.

O enviado do jornal espanhol El Pais observou que um milhão de habitantes sintonizavam o programa de Manaus, “abduzidos pela carnificina ao vivo”. A audiência entrava em pânico, apreensiva com a falta de segurança, os índices crescentes de criminalidade e a inépcia das autoridades. O apresentador do programa era traficante de drogas e, pragmático, conseguia audiência ao mesmo tempo em que eliminava os concorrentes nos pontos de venda de drogas. “Todos idolatravam o homem que, certamente, seria capaz de purgar e dirigir os corpos de segurança do Estado e que, além disso, emprestava o ombro nas batidas da lei contra a bandidagem” - diz a matéria do jornal. O apresentador de TV, mandante de pelo menos cinco estripamentos sumários de criminosos, por ser deputado tem imunidade e não pode ser processado sem autorização da Assembléia do Amazonas. Mais uma excrescência da política nacional.


O autor, Zarcillo Barbosa, é jornalista e colaborador do JCnet

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